sábado, 5 de setembro de 2009

perspectiva Feminina

Não podia chamar de brisa. Os ventos gelados cortavam a alma já deveras dilacerada dos transeuntes leopoldenses numa conspiração maléfica a respeito da ácida discussão que espreitava o rosto. Eu caminhava tensa. Pensando agora, sempre tive rudeza em meu comportamento: desde segurar um panfleto até desmanchá-lo, à reposição de sal no antigo saleiro. Mas o caso agora era diferente, minha tensão tinha raízes no conflito semeado por mim ou por ele, talvez ambos. Em cada esquina do apertado centro, me enrolava mais em meu casaco aveludado, com tons de café torrado. Peguei uma rua alternativa e segui meu rumo, parei após dois quarteirões e suspirei: foi como se o ar expelido convidasse (ou intimasse) lágrimas a também se desprenderem... Inclinei minha cabeça em direção ao céu nublado: assim como o sol penetrava as carregadas nuvens, eu sabia que deveria esclarecer os problemas criados com dignidade. Entretanto, agora que meu destino mostrava-se próximo, a coragem que em mim vibrava, ia assim perdendo vigor. Já não queria mais encarar aquele rosto de superioridade, aqueles trejeitos frenéticos por vezes poupados, beirando o escândalo. Cheguei. Por mais que meu corpo protestasse, minha alma berrasse, havia chegado.
A Igreja do Relógio permanecia fechada e um filete tímido de sol me banhava. Segundo os ponteiros negros do gigante relógio, cheguei na hora combinada, eram exatamente três horas da tarde; felizmente ele ali não me esperava. Cinco minutos passaram, já plantava uma pequena esperança de que ele não mais viesse: “Talvez, talvez tenha esquecido! Ou quem sabe desistido! Sim... Na última hora desistiu. Tinha certeza que ele...” Repentinamente minhas hipóteses foram esfaceladas por braços largos que me envolveram num abraço apertado. Era ele. Levemente sem graça, o cumprimentei. Analisava-me dos pés a cabeça. Vagamos pelas ruelas até encontrar um Café: o lugar de tons opacos possuía aroma de padaria e cinco mesas. Escolhemos a mesa da lateral, recostada a uma janela da qual se via uma velha casa desbotada frente à rua não movimentada. Sobre a mesa branca, apenas um jornal. Enfim duas xícaras de café transbordante chegaram, eu já não sabia onde colocar as mãos. Adoçava meu café enquanto ele acariciava o papel áspero do jornal; ambas as mentes trabalhando encima do motivo do encontro - havia um? - negando conversas fúteis. Sei apenas que teria feito algo que o deixou ofendido; seus olhos verdes cintilantes perfuravam minha alma suscetível desejando espremer a verdade. Alimentava um porte de leão: a face rígida, postura reta; a barba por fazer remetia à ostentação de uma juba magistral; homem forte, equilibrado e inacessível. Minha paranóia crescia veloz: cada mínimo movimento do jovem incitava minha mente pérfida a criar adjetivos e psicologismos que distorciam a realidade. O exagero não só em minha mente morava, mas na dele; independente de formas.
O jovem de pele clara calculava cada palavra, articulava-as com perfeição e apatia; trazia-as numa vasilha d’água - ou seria d’alma? -, qual administrava com as pontas dos dedos, ardiloso no encobrimento do que sentia. Eu desviava olhares, não conseguia fitá-lo por mais que alguns segundos; criava afazeres: alisava o cabelo, brincava com a manga do casaco, etc. Nossa conversa tomava rumos incertos, envolvia questões maiores e problemas em comum. Enfim, vacilou: revelou indícios da alma fragilizada ao baixar a cabeça e dizer: “-Engraçado que... Pra única pessoa que eu contei, ela...” No meio da sentença, desistia. Eu retomava: “- Ela...?”. Ele completava: “-Ela nem deu bola, sequer demonstrou o mínimo interesse.” Indignada, dizia: “-Mostrei, sim! Fiquei surpreendida, ora! Não é todo dia que escuto uma coisa dessas! Tentei te ligar.” Ríspido, censurava-me: “- Olha pra mim enquanto fala!”. Olhei. Aprofundamos a conversa. Como quem apaga o fogo de uma vela, ele soltou algumas letras: “-D i s simulada”. Repeti: “-Eu, dissimulada?!” Enfureci: alterei o tom de voz, mostrava-me inquieta. E foi diante da passividade dele que cedi às lágrimas e à vermelhidão das maçãs do rosto. Repousei uma nota encima da mesa e fitei a porta de saída convidativa. Ele deve ter ficado constrangido por ter presenciado meu escândalo público. Contudo, postava-se na ponta da cadeira, desmanchado. Raposa assustada. Não vou mais embora, deixarei que o ambiente claustrofóbico misture-se com as pausas da nossa discussão, o silêncio e o sufoco em fundição. Não pretendia masoquismo, só não queria me entregar às conveniências da fuga.
No momento, ele balançava a colherzinha do café em círculos precisos, como se estivesse efetuando uma complexa incisão em lugar sensível. Confessou que esperava consolo; demonstrações de interesse pueril, um lenço colorido. “-Esperava encontrar em mim, outra. Esperava encontrar ela.” disse com veemência. “É...” disse ele desapontado. E assim seguia sua repressão. Perguntei se ele queria que eu insistisse, agilmente negou, mas sei, queria. Apesar de nunca ter avançado naquele rosto maroto de contornos bonitos, amava-o.
Caminhamos até a praça gelada e nos bancos de concreto repousamos; o sol a penetrar-nos. Os pés paralelos, as cabeças baixas e as bocas suspirando o ar frio do rigoroso outono. Olhávamos para a porção de água estagnada que havia se formado encima da areia suja, o alto prédio refletido na poça. Acredito que essa imagem o instigou à honestidade: deitou no banco, pousou a cabeça em meu colo e revelou o segredo enquanto eu afagava seus cabelos, sentia seu cheiro. Recebi as palavras sem alarme, com respeito. Então rimos. Pensei em argumentar, mas resolvi apenas encostar a minha mão na dele. Olhei pro lado e notei que mais três casais sentavam nos bancos em fileira; o cenário completava-se com alguns cachorros mal cuidados.
Os céus anunciavam o crepúsculo precoce que ganhava forma. Veio então a necessidade súbita de evasão. Perguntei: “-Tu sabes tragar?”, não muito seguro me respondeu: “Claro que sei!”. Foi aí que encontramos um barzinho próximo à prefeitura. Não fosse o pouco dinheiro, teríamos comprado! Felizmente havia uma marca de menor preço na antiga Tabacaria Central. Empreitamos uma busca frenética por fogo até encontrá-lo. Não apenas o céu levemente estrelado havia mudado, mas também nossas almas haviam acalmado. De mãos atadas, vagamos noite adentro queimando por fora, o incêndio de dentro.