domingo, 18 de outubro de 2009

Abraços de Navalha

Matina, cinco horas. O hálito desagradável que de minha boca saía tornou-se assim agradável para narizes acostumados quando, na beira da pia, cuspi uma mistura de saliva, água, pasta de dente e vestígios de uma noite mal dormida. Logo tirei todas as impurezas da noite anterior, meu corpo nu e a água corrente, mas nunca quente. Trajava marrom, não por acaso. Ao tomar um copo de leite, ressoavam em meus ouvidos os gemidos em pânico de vacas sendo açoitadas. Anfitriãs do mesmo leite, que poupado de seus delicados bezerros, resvalava desvairado em minha garganta quente.
Após amarrar os cadarços brancos de meu tênis vermelho-sangue, andei com precisão até a parada de ônibus. Na rua, pedras úmidas chocavam-se em desarmonia. Comparava suas formas geométricas às folhas desidratadas que se estendiam ao longo da rua estreita. Dentro do ônibus, vasculhei a mochila que trazia nas costas à procura de dinheiro. Alvoroçado, deixei meu isqueiro cair. Franzi a testa constrangido e fui ao encontro do mesmo. Antes de voltar à posição vertical, avistei duas pernas inquietas, desnudas e belas. Sentei ao lado da menina ruiva dos cabelos esvoaçantes, quais tentavam entrelaçar meu corpo como labaredas de fogo. E assim foi ganhando força minha paranóia matinal.
Na estação de trem, tirei um Neruda da mochila e fingi ler. Porém, a menina vulcânica dos cabelos esvoaçantes havia sentado justo em minha frente. Usava óculos negros que destacavam a pele clara, límpida fonte de sardas. Trajava uma saia azul, sapatilha escura e camiseta larga. Cruzou a longa perna e começou a balançá-la em minha direção; não sabia ao certo se atrás dos negros óculos, outro olhar me atravessava em lânguida paixão. Levanta, sigo-a com a cabeça. Ostento uma letargia ao passo que observo com pesar o amor (segundo Platão) esvair-se através das metálicas portas que em segundos fecharam-se.
A máquina veloz deixou-me em pleno Mercado Público, onde os odores dançavam freneticamente no denso ar, misturando-se em contrastantes cheiros que me afetavam por inteiro: peixes, ervas, frutas, camarão, gado, orégano e manjericão. Caminhei pelo centro apinhado. Após frações de tempo para alguns seculares, encontrava-me em meu destino. Fui logo acolhido como fruto maduro que é pego com todo cuidado e levado à boca com prazer. Minha euforia em tal local transcendia o próprio sentido da palavra. Tratava-se de uma orgia ilícita, entrega mútua e sensibilidade.
À noite, abraços e beijos, juras e despedidas. A hora de ir embora mostrava a face. Naquele mesmo dia, agora noite especial, saí embebido de alegria e peculiar auto-estima. Não foram as ruelas porto-alegrenses sujas e desertas que tiraram tal sentimento do meu peito.
Tropeço e caio, sinto o chão duro e gelado, agora em minha face colado. A voz grave do homem forte produz imediata adrenalina em meu corpo contraído. Levanto devagar, tremendo; porém sempre obedecendo. Era difícil responder às perguntas do homem inseguro, uma vez que a lateral de uma gelada navalha encostava-se em meu pescoço suado; não de suor, creia-me, mas de lágrimas. Tão compenetrado estava, demorei a enxergar o pau de madeira que ia ganhando altura nas mãos de um segundo homem de voz aguda.
Matina, sete horas. O sol pairava em minha janela tornando visíveis os diversos hematomas provocados na noite anterior. Ruim, era ter que senti-los. Pior, era ter que carregar o dia em que eles foram covardemente desferidos.

Um comentário:

  1. Esse foi publicado em livro de escola, imaginem. Vai de tensão sexual ao exagero, dizem uns.

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Divagar é permitido.